Contradições da gestão Adriane Lopes em Campo Grande
Em meio à crise financeira declarada, a Prefeitura de Campo Grande toma decisões que reacendem debates históricos sobre prioridades na administração pública. Pelo terceiro ano consecutivo, os servidores municipais não terão reajuste linear nos salários. A justificativa da prefeita Adriane Lopes (PP) é a “incapacidade financeira” do município. A alegação, no entanto, colide frontalmente com outro dado: o reajuste de até 25% em contratos com empreiteiras, autorizados no mesmo período em que a categoria foi informada de mais um ano de congelamento salarial.
O contraste entre o rigor fiscal imposto aos servidores e a generosidade contratual com prestadores de serviço evidencia uma escolha política, não apenas contábil. Segundo publicação no Diário Oficial de Campo Grande (Diogrande) de 1º de abril, o contrato com a Andrade Construções Ltda para manutenção de pontes de madeira foi reajustado em R$ 884.726,10 — um acréscimo de 24,94%, elevando o valor total para R$ 4,43 milhões.
Esse reajuste não é isolado. Outros seis contratos — principalmente para manutenção e ampliação da iluminação pública com luminárias de LED — também foram majorados em março, com aumentos entre 24,92% e 24,98%. Tudo isso em um cenário onde a inflação acumulada dos últimos 12 meses foi de 5%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Enquanto isso, o funcionalismo municipal — com data-base em maio — sequer iniciou uma mesa de negociação. A única exceção parcial foi o magistério, que recebeu, em fevereiro deste ano, um reajuste de 6,27% sobre o piso salarial dos professores. Contudo, segundo entidades da categoria, a prefeitura não respeitou integralmente a legislação municipal referente aos profissionais com carga horária de 20 horas.
Prioridades orçamentárias e escolhas políticas
Ao justificar a ausência de reajuste para o funcionalismo, Adriane Lopes afirmou que os aumentos salariais só avançarão “de acordo com a capacidade financeira do município”. Contudo, a “incapacidade” não impediu a gestão de aditivar contratos milionários com empreiteiras. Essa incoerência expõe um padrão frequente em administrações públicas brasileiras, onde a rigidez fiscal é seletiva — recaindo com mais força sobre o trabalho e sendo suavizada diante de interesses empresariais.
A professora e cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, em entrevista à Folha de S.Paulo, já alertava para os riscos da “naturalização das desigualdades no serviço público”, quando a máquina estatal “ajusta seus gastos penalizando os trabalhadores e poupando setores com maior influência econômica ou política”. A análise parece ecoar com precisão no caso campo-grandense.
O sociólogo Jessé Souza, em A Elite do Atraso (Leya, 2017), vai além e denuncia o que chama de “captura do Estado brasileiro por interesses privados, que se escondem sob a aparência de legalidade e racionalidade fiscal”. O aumento de contratos prestes a vencer e a prática de “compensação” de deságios com aditivos próximos ao limite legal de 25% se encaixam nesse cenário de oportunismo institucional.
Silêncio e desgaste
A falta de negociação entre prefeitura e sindicatos reforça a sensação de abandono. Segundo informações, nenhum índice foi sequer sugerido até o momento para iniciar tratativas salariais. Em 2023, a gestão assinou com a ACP (Sindicato Campo-grandense dos Profissionais da Educação Pública) um acordo para concessão de promoções por tempo de serviço e por titulação — o que representou avanços na carreira, mas não substitui o reajuste inflacionário linear, direito básico garantido constitucionalmente.
A ausência de diálogo preocupa lideranças sindicais. O presidente da Fetems, Jaime Teixeira, presente no evento de assinatura do acordo em 2023, alertou que o congelamento salarial repetido “afeta diretamente a qualidade de vida dos trabalhadores e o funcionamento do próprio serviço público” (Correio do Estado, 02/05/2023).
O paradoxo da escassez seletiva
A situação escancara um paradoxo: a escassez seletiva. Para a saúde pública, falta dinheiro para repor medicamentos básicos nas unidades de atendimento. Para os servidores, falta margem para reposição inflacionária de seus vencimentos. Para contratos com empresas privadas, há folga orçamentária que permite reajustes milionários em curto espaço de tempo.
Historicamente, a máquina pública brasileira se construiu sobre estruturas patrimonialistas, como bem analisou Raymundo Faoro em Os Donos do Poder (Globo, 2001). Faoro aponta que o Estado moderno brasileiro muitas vezes opera em favor de grupos de interesse — empresariais ou políticos — em detrimento do bem comum. O caso de Campo Grande parece ilustrar com nitidez essa lógica perversa.
O congelamento salarial dos servidores municipais, em contraste com os generosos reajustes a contratos com empreiteiras, não é apenas uma questão contábil. É uma decisão política, que revela prioridades, valores e compromissos de uma gestão pública. Às vésperas de mais um ciclo eleitoral, essas decisões tendem a ganhar ainda mais relevância — não só para os servidores diretamente afetados, mas para toda a sociedade campo-grandense, que precisa decidir que tipo de Estado deseja sustentar.