O transplante de coração, como ao que foi submetido o apresentador Fausto Silva no domingo, requer uma combinação de diversos fatores para dar certo. Um sistema rigidamente regulado por leis e protocolos que envolve empenho, tecnologia, profissionalismo e um pouco de sorte do paciente.
É impossível que fatores como poder financeiro e a influência garantam prioridade ao receptor, segundo o médico Bruno Biselli, supervisor do Programa de Cuidados Clínicos de Insuficiência Cardíaca do Hcor. Ele elencou à reportagem o passo a passo para realização de um transplante de coração.
O médico cardiologista de Campo Grande Ricardo Ayache também afirma o mesmo que o colega.
“É extremamente rigoroso o processo. As filas são muito bem organizadas, e existe o critério de gravidade do caso dos pacientes que estão internados em terapia intensiva, em estabilidade hemodinâmica.
Esses pacientes, sim, têm prioridade total para o transplante”, explica.
A corrida para o transplante tem início assim que há a suspeita de que um paciente hospitalizado perdeu a atividade cerebral. Diz-se que o potencial doador está em morte encefálica. Havendo esse evento neurológico, os órgãos ainda precisam estar em funcionamento para que o transplante seja viável.
Um protocolo legal é acionado. Após a avaliação e confirmação, uma equipe de captação de órgãos faz o procedimento no doador. São grupos ligados
a instituições de saúde, identificados pela sigla OPOs, ou seja, organizações de procura de órgãos.
A atuação dessas equipes é regional, uma vez que a regulação das doações é coordenada pelos governos estaduais.
Esse time é responsável por fazer contato com a família do doador e pedir a autorização para a doação. No Brasil, a família é a responsável por tomar tal decisão. Uma vez tendo o aval, uma central estadual de transplantes avalia quais são os pacientes na fila de transplantes que estão aptos em determinado estado.
Fila é nacional, mas gravidade, local e compatibilidade influenciam a ordem
A lista de transplantes é única, controlada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e vale para as redes pública e particular.
Antes do tempo de inscrição, a gravidade do paciente garante prioridade em alguns casos. Dentro da fila principal, há uma fila secundária, organizada pelo tipo sanguíneo de cada um dos pacientes.
Existem ainda outros critérios a serem considerados, como o peso, a altura e um exame imunológico que determina se há compatibilidade entre o doador e o receptor.
A idade do doador é relevante. No Brasil, doadores acima de 45 anos costumam ser rejeitados, pois o coração precisaria passar um cateterismo para a identificação de doença coronária, e faltam recursos para isso.
Além dessa questão, o elevado número de mortes violentas de jovens, sobretudo em acidentes de motocicletas ou baleados, aumenta a disponibilidade de potenciais doadores jovens.
Se houver incompatibilidade imunológica, isto é, a detecção de que o receptor tem anticorpos já formados para o tecido daquele doador, considera-se que há elevada chance de rejeição hiperaguda. Dessa forma, o órgão passa para o próximo da fila que seja compatível.
É impossível alterar a posição da fila por critérios que não sejam técnicos, como afirmam Bruno Biselli e Ricardo Ayache. Em Campo Grande, a Santa Casa é o único hospital habilitado a fazer transplantes desse tipo no Estado.
Neste ano, a unidade já realizou um único procedimento. Equipes de cirurgiões vão para onde está o doador. Retiram o coração, que tem prioridade, e depois fazem a captação de outros órgãos.
O coração é retirado ainda batendo. O órgão é mergulhado em uma preparação química, uma solução de preservação, em um saco plástico estéril. Em seguida, é colocado em uma caixa térmica com gelo. Mantê-lo com mínima atividade metabólica durante o transporte é o objetivo desse preparo.
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Transporte é a etapa na qual o dinheiro faz toda a diferença
Três horas e meia é o prazo considerado adequado entre a retirada do coração do doador e a implantação no receptor. Depois disso, o órgão pode ser considerado prejudicado.
Ambulância, helicóptero e avião podem ser utilizados no transporte. Isso depende da distância e da disponibilidade. O transporte aéreo ocorre quando o doador e o receptor estão distantes, eventualmente, em diferentes unidades da Federação.
Embora o sistema de busca seja regional, a lista é nacional. Se o órgão não é compatível com nenhum paciente de um determinado estado, é necessária uma operação aérea para atender alguém em outra região do País.
Essa é uma das poucas etapas em que a condição financeira da família do paciente pode fazer diferença, pois o transporte aéreo costuma depender da disponibilidade de aeronaves da Força Aérea Brasileira e da Polícia Militar, por exemplo. Receptores que têm condições de custear voos privados podem, legalmente, utilizar aeronaves particulares.
Paciente espera já sem o coração doente
Enquanto o coração é retirado do doador, quem receberá a doação começa a ser preparado. No centro cirúrgico, o receptor tem o peito aberto para a retirada do coração doente. Trata-se de um trabalho cronometrado, calculado para ter sincronia com a chegada do coração sadio.
Sem o coração, o paciente é mantido vivo por uma máquina de circulação extracorpórea, que faz a circulação do sangue. É um mecanismo usado em praticamente todas as cirurgias cardíacas.
Com o novo coração disponível, cada vaso é suturado de forma anatômica, ou seja, buscando o melhor ajuste possível para que o sistema seja reconstruído como era originalmente.
Quando está com os vasos suturados, o sangue do receptor começa a entrar no coração novo e, dessa forma, começa a “lavar” a solução de preservação que mantinha o coração parado, além de aquecer o órgão.
Ao voltar a ser perfundido pelo sangue, o coração começa a ter atividade elétrica: volta a bater. A circulação extracorpórea, então, é dispensada.
Eventualmente, um pequeno choque elétrico, direto no órgão, é necessário para a regulação do ritmo. Pode existir a necessidade de um marcapasso provisório. Em alguns minutos, porém, é normal que o coração esteja batendo no ritmo próprio.
Primeiros dias são os mais críticos
O pós-operatório é parecido com qualquer cirurgia cardíaca, em uma unidade de terapia intensiva (UTI). O paciente costuma ser extubado em até 48 horas após o transplante.
Imunossupressores serão necessários por toda a vida do paciente transplantado, a fim de evitar que o coração seja compreendido como um tecido que não pertence ao corpo. Esses medicamentos têm o papel de inibir o sistema imunológico do receptor.
Há a tendência de redução dos medicamentos. Ainda, há casos de pacientes com sobrevida de duas décadas com doses mínimas de medicação imunossupressora.
A fase inicial é a mais crítica pós-transplante, em especial as primeiras 48 horas. Posteriormente, os primeiros 30 dias. No primeiro ano, a taxa de sobrevida é de 80%.
Ao passar disso, espera-se que o paciente viva por mais de 12 ou 13 anos.