Samuel Hanan*
A revelação de que milhões de aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) foram lesados por meio descontos indevidos em seus contracheques entre 2019 e 2024 revela talvez o episódio recente de maior grau de perversidade contra a parcela mais vulnerável da população brasileira, da qual foram tiradas pelo menos R$ 6,3 bilhões.
Choca pela sua crueldade e desfaçatez porque roubou dinheiro das já minguadas aposentadorias e pensões de quem depende desses recursos para sobreviver na fase mais crítica da existência – velhice, doença, invalidez, ou morte do ente querido. E é inaceitável por se concretizar justamente no pilar da seguridade social brasileira, o INSS, concebido para amparar os cidadãos nos momentos de maior necessidade e que, para isso, contribuíram a vida inteira para ter direito aos benefícios sociais.
O que o país assistiu, estupefato, não foi um apenas um ato administrativo falho ou simples roubo. Foi um atentado à dignidade humana, praticado justamente contra aqueles que não possuem reservas financeiras, que não têm advogados caros à disposição, que dependem de cada centavo, afetando a própria capacidade de subsistência daqueles que não têm a quem mais recorrer.
Estamos falando de pessoas que já sofreram demais com um sistema previdenciário lento e falho, caracterizado por filas intermináveis (reais ou virtuais), exigências burocráticas descabidas, sistema digitais inacessíveis para grande parte da população atendida, e análise de processos que levam meses, por vezes anos, enquanto a fome bate à porta e os remédios acabam. Um sistema que parece ter esquecido sua função social, transformando-se em um labirinto kafkaniano para os que mais precisam de um caminho direto e humano e, em vez de amparo social, veem, impotentes, benefícios negados ou postergados por erros grosseiros. Mais uma consequência de uma máquina burocrática que é gigante e, para o cidadão comum, impessoal e inatingível.
Mas como esse país chegou a tal nível de crueldade? A resposta, dolorosamente evidente, parece estar na certeza da impunidade. Poucos servidores são de fato responsabilidades pelos atrasos, pelos erros, pela falta de atendimento humanizado. As decisões que prejudicam milhares de pessoas raras vezes resultam em consequências severas para os tomadores de decisão ou aprimoramento da estrutura que permite tais falhas. Cria-se um ciclo vicioso onde o descaso é normalizado, pois não há punição efetiva.
É só mais um retrato de uma nação leniente com a corrupção e indiferente a seguidas práticas que visam apenas ao incremento de benefícios a uns poucos privilegiados. Enquanto o aposentado é escandalosamente roubado, o Congresso aprova o aumento de 18 cadeiras na Câmara dos Deputados, as assembleias estaduais pegam carona e já articulam a mesma proposta; o Judiciário aumenta desavergonhadamente os penduricalhos que permitem ganhos dos magistrados muito acima do teto constitucional e boa parte isenta do Imposto de Renda, além de garantir mais folgas que posteriormente serão indenizadas, e o governo tira dinheiro do salário-mínimo por meio de uma nova fórmula de reajuste que o trabalhadora somente compreenderá quando perceber menos comida na mesa.
Não há nação que prospere tratando seus cidadãos dessa maneira e se omitindo quando à necessidade de atacar urgentemente essas questões.
A indignação da sociedade não é sem razão, pois o argumento do governo de que o problema do INSS teve início do governo passado não o exime da responsabilidade, porque o escândalo só aumentou e seria obrigação de quem prega moralidade apoiar todas as iniciativas, inclusive instauração de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), para investigar, punir, prender e confiscar bens para a recuperação do dinheiro roubado de quem ganha mísero um salário-mínimo de aposentadoria ou pensão.
Qualquer posicionamento em contrário leva a crer que o governo está mais interessado em manter a divisão da sociedade brasileira – direita x esquerda, ricos x pobres -, em aumentar a arrecadação – com mais tributos, mais inflação e juros altos -, e ainda retirando dinheiro dos pobres via redução dos benefícios sociais (com a não correção do Bolsa Família e do BPC, mais inflação (imposto perverso) e alteração da fórmula de reajuste do salário-mínimo), tudo agravado agora com a falta de firmeza e transparência para a apuração do assalto do INSS, provavelmente cobrindo o rombo com o dinheiro de toda a população, quando o ressarcimento deveria ser feito exclusivamente pelas associações e sindicatos beneficiados com a fraude.
É essencial e inadiável que a sociedade brasileira – hoje aparentemente anestesiada – reflita sobre o que está acontecendo no INSS. Não como um problema técnico-administrativo menor, mas como mais um triste episódio da grave crise ética e social que se aprofunda no Brasil. A audácia e a insensibilidade de subtrair dos mais pobres e vulneráveis, amparadas pela perversa certeza da impunidade, corrói os alicerces da justiça social e desumaniza as relações entre o Estado e o cidadão. Exigir transparência, responsabilização exemplar e devolução do dinheiro roubado é o mínimo que se pode fazer para resgatar a confiança no INSS e, mais importante, a dignidade de seus segurados.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br