Enquanto o protecionismo de Trump ameaça indústria brasileira, extrema-direita local vibra
Uma tempestade econômica se formou sobre o Brasil, e ela não veio do socialismo imaginário que o bolsonarismo insiste em combater. Veio de Washington, sob a assinatura de Donald Trump. A nova rodada de tarifas comerciais contra automóveis e autopeças anunciada pelo governo dos EUA nesta quarta (2) atinge em cheio setores estratégicos da economia brasileira. Mas a resposta de figuras bolsonaristas, longe de uma defesa soberana, foi de lealdade canina ao ex-presidente americano — mesmo em prejuízo direto aos interesses nacionais.
A partir de amanhã (3 de abril) entra em vigor nos Estados Unidos uma tarifa de 25% sobre carros importados, elevando drasticamente o tributo anterior, de 2,5%. Autopeças serão igualmente atingidas a partir de 3 de maio. A medida afeta frontalmente o Brasil, que exportou em 2024 cerca de US$ 1,3 bilhão em autopeças aos EUA, representando 17% de todo o volume exportado pelo país nesse setor. Veículos completos somaram mais US$ 242 milhões, sendo caminhões a maior parte.
Essas medidas fazem parte de uma ampla ofensiva protecionista promovida por Trump como bandeira eleitoral, vendida como forma de restaurar a hegemonia industrial americana. A retórica é conhecida: a perda de participação dos EUA na produção global de automóveis, que caiu de 26% em 1985 para 12% em 2017, seria uma “ameaça à segurança nacional”.
Mas por trás dessa justificativa está uma aposta agressiva no unilateralismo, que já provoca reações duras de diversos países, como Canadá, União Europeia e México. O governo brasileiro, por sua vez, busca caminhos por meio de negociações diplomáticas, uso das salvaguardas na OMC e eventual retaliação tarifária permitida pelos tratados multilaterais.
A rendição bolsonarista
Em vez de apoiar qualquer reação técnica ou diplomática, o bolsonarismo tratou a agressão tarifária como se fosse culpa do governo brasileiro. Jair Bolsonaro saiu publicamente em defesa de Donald Trump, afirmando que “o verdadeiro vírus é o socialismo de Lula”, e não as medidas do aliado.
Eduardo Bolsonaro, deputado federal licenciado, chegou a afirmar que votaria contra o projeto de lei que autoriza o Brasil a retaliar os EUA pelas tarifas impostas. Para ele, não se trata de uma guerra comercial, mas de “reciprocidade”: como se o Brasil fosse culpado por aplicar tributos mais altos a produtos americanos.
A lógica bolsonarista, no entanto, não resiste a fatos. Durante o próprio governo Bolsonaro, Trump impôs cotas às exportações brasileiras de aço em 2020, sem qualquer contrapartida ou exceção. O governo brasileiro não reagiu, não recorreu à OMC e não enfrentou Washington em nenhum momento, priorizando o alinhamento político ao interesse nacional.
Como afirmou um negociador do Itamaraty à época: “Abriram mão do interesse nacional para defender a eleição de Trump.”
Nos estados, governadores alinhados à direita — muitos deles beneficiados por investimentos ligados à indústria automotiva — preferem não arranhar o verniz da lealdade ideológica. O caso mais eloquente é o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que recentemente posou para fotos usando um boné vermelho do MAGA, como se fosse figurante num comício em Ohio. Agora, diante de tarifas que podem atingir diretamente a economia paulista, o mesmo Tarcísio se cala, talvez esperando que o protecionismo de Trump poupe os amigos do marketing internacional. Até porque questionar o mestre do boné pode custar curtidas preciosas no Twitter.
A política externa como culto
Durante os quatro anos de Bolsonaro, a diplomacia brasileira foi transformada num braço do trumpismo internacional. O Brasil abriu o mercado para o trigo americano, renunciou ao seu status de país em desenvolvimento na OMC, rompeu consensos históricos na ONU e votou sistematicamente com os EUA em temas como direitos humanos e meio ambiente — até mesmo contra países do Sul Global com os quais sempre manteve alianças históricas.
Essa mudança de orientação não se deu com base em avaliações econômicas ou geopolíticas, mas em alinhamentos ideológicos e religiosos. A relação pessoal entre Bolsonaro e Trump passou a ditar prioridades estratégicas.
Como afirmou o diplomata e ex-ministro Celso Amorim: “Foi a primeira vez, desde o fim da ditadura, que o Brasil abdicou de sua autonomia em política externa em favor de um culto de personalidade internacional.”
Tarifas, empregos e isolamento
Os impactos das tarifas já são visíveis nos mercados. A indústria automobilística e de autopeças no Brasil, que emprega centenas de milhares de trabalhadores direta e indiretamente, depende de cadeias globais de suprimentos e de mercados de destino previsíveis. Com as tarifas, empresas instaladas no Brasil perdem competitividade, encarecem seus produtos e podem reduzir investimentos ou demitir.
Mesmo assim, Trump estima arrecadar US$ 100 bilhões com as novas tarifas — número que ele aumentou para US$ 1 trilhão durante um pronunciamento, sem qualquer respaldo técnico. Estudos independentes do Peterson Institute for International Economics e da Harvard Business Review mostram que medidas semelhantes no primeiro mandato de Trump provocaram aumento de preços para o consumidor, inflação, e desorganização de setores inteiros.
As tentativas de justificar as tarifas como estratégias de “reindustrialização” foram duramente criticadas por economistas como Paul Krugman, que afirmou que “Tarifas não são uma política industrial. São uma política de curto prazo baseada no medo e na hostilidade.”
A síndrome de dependência externa
Historicamente, o Brasil alternou entre posturas de autonomia e momentos de subordinação nas relações exteriores. Durante o regime militar, o país chegou a adotar o “alinhamento automático” com os EUA, mas mesmo ali havia setores do Itamaraty que preservavam o interesse nacional em negociações estratégicas. O bolsonarismo, porém, radicalizou esse modelo: substituiu a política externa por uma política de devoção.
Como aponta o sociólogo Jessé Souza, “a elite brasileira se sente parte da elite americana. E prefere trair o país a confrontar esse espelho imaginário.”
O que está em jogo?
O que Trump iniciou foi mais que uma guerra comercial. É um projeto de desglobalização seletiva, com base em força, chantagem e populismo econômico. A questão central não é apenas quanto o Brasil perderá com as tarifas, mas quanto ainda pode perder se continuar sem uma política externa soberana, sem defesa ativa de sua indústria e sem líderes capazes de colocar o país acima de suas lealdades ideológicas.
Como escreveu o geógrafo Milton Santos, “não há globalização justa sem soberania nacional. Submissão não é destino, é escolha.”
A fatura da vassalagem
O bolsonarismo vendeu aos brasileiros a ilusão de uma aliança privilegiada com os Estados Unidos. O que entregou foi isolamento, constrangimento internacional e, agora, tarifas que penalizam a indústria e os empregos no Brasil. Enquanto países reagem com firmeza e defendem seus cidadãos, a extrema-direita brasileira age como embaixada informal do trumpismo.
A guerra não foi declarada pelo Brasil, mas ele está nela — e, até aqui, entrou desarmado, dividido e com parte de sua elite torcendo pelo inimigo.