Pesquisa reacende o debate sobre o futuro do trabalho e da redistribuição de renda
“Renda sem trabalho torna as pessoas preguiçosas.” Essa máxima, repetida à exaustão por críticos da assistência social, acaba de sofrer um abalo profundo vindo da Alemanha. Um dos mais abrangentes experimentos já realizados sobre a renda básica universal revelou que os beneficiários do chamado “dinheiro grátis” não só continuaram trabalhando, como mantiveram uma jornada média de 40 horas semanais. O estudo, conduzido entre 2021 e 2024, reabre com dados sólidos uma discussão antiga, mas cada vez mais urgente: como repensar o trabalho e a distribuição de riqueza em sociedades crescentemente desiguais?
O Projeto-Piloto de Renda Básica, promovido pela ONG alemã Mein Grundeinkommen e coordenado por instituições respeitadas como o Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (DIW Berlin), selecionou 122 pessoas entre mais de 2 milhões de candidatos. Durante três anos, esses indivíduos receberam 1.200 euros mensais — cerca de R$ 7,9 mil — sem qualquer exigência de contraprestação. Um grupo de controle com 1.580 participantes permitiu a comparação dos efeitos da renda incondicional.
Todos os selecionados tinham entre 21 e 40 anos, viviam sozinhos e possuíam renda líquida entre 1.100 e 2.600 euros por mês. A escolha desse perfil visava justamente testar o impacto da renda extra entre pessoas inseridas no mercado de trabalho e com autonomia financeira básica.
O resultado: ninguém largou o emprego para viver da mesada. Pelo contrário, muitos dos beneficiários se sentiram mais seguros para mudar de trabalho — uma decisão tomada principalmente nos primeiros 18 meses do estudo. Outros aproveitaram a nova estabilidade para iniciar cursos universitários ou técnicos, conciliando-os com o emprego.
Segundo a psicóloga Susann Fiedler, chefe do Instituto de Cognição e Comportamento do Instituto Max Planck, esse foi um dos achados mais significativos. “O aumento na satisfação com a vida e a sensação de autonomia indicam que a renda básica atua como catalisador de bem-estar e realização pessoal”, afirmou em entrevista coletiva durante a apresentação dos resultados.
A experiência foi documentada na série Der grosse Traum: Geld für alle (“O grande sonho: dinheiro para todos”), dirigida por Alexander Kleider. O documentário acompanha a vida de cinco participantes e mostra os dilemas cotidianos provocados pela renda básica — entre idealismo e consumismo. O fundador da ONG responsável pelo experimento, Michael Bohmeyer, também é um dos protagonistas. Ex-empreendedor do setor de tecnologia, ele deixou sua startup para se dedicar à luta por um modelo mais justo de distribuição de renda.
“O que eles estavam fazendo é algo excepcional”, afirmou Kleider à imprensa. “Não é propaganda, é uma história pessoal sobre escolhas, medo, liberdade e mudança social.”
Se os resultados práticos mostram que a renda básica não desestimula o trabalho, resta a pergunta: como financiar uma política dessas em escala nacional?
A proposta mais defendida pelos ativistas do Mein Grundeinkommen é simples: redistribuição via impostos progressivos. Nos cálculos da organização, os 10% mais ricos da população arcariam com parte da renda dos demais. Isso garantiria aumento de poder aquisitivo para 83% da sociedade, enquanto os 7% da faixa intermediária não teriam mudanças significativas.
Segundo a atual líder da associação, Klara Simon, a proposta é uma resposta concreta ao avanço do populismo e ao descontentamento social. “A renda básica não é um retiro, mas um trampolim social. Ela empodera as pessoas. Quem conhece esses resultados e permanece inerte está negando o potencial inovador e democrático da nossa sociedade”, afirmou Simon na coletiva de imprensa de divulgação do estudo.
A Alemanha, onde o debate sobre o tema remonta aos anos 1970, já conta com um sistema robusto de seguro-desemprego. Mas a renda básica propõe um modelo mais radical: um benefício universal, incondicional e cumulativo com outras fontes de renda. Ou seja, o cidadão recebe o valor fixo e pode continuar trabalhando normalmente.
A discussão está longe de ser apenas teórica. Em 1º de maio, a ONG lançará uma nova rodada do experimento, com duração de um ano e financiamento coletivo de mais de 500 mil euros. A proposta, já defendida por figuras tão distintas quanto o Papa Francisco e Elon Musk, caminha para o centro do debate público em uma Europa pressionada pela desigualdade e pela insegurança econômica.
O caso alemão não é isolado. Experimentos semelhantes ocorreram na Finlândia, no Quênia e no Canadá, todos com resultados que desafiam o senso comum. Como aponta o economista Guy Standing, um dos principais defensores da renda básica e autor de The Precariat: The New Dangerous Class, “a ideia de que as pessoas precisam ser coagidas a trabalhar é um resquício de um sistema ultrapassado de controle social”.
Em tempos de automação crescente e crises econômicas cíclicas, pensar em modelos alternativos como a renda básica incondicional pode não ser apenas uma utopia generosa, mas uma necessidade estrutural.